sábado, 3 de janeiro de 2015

Resenhas - A História de Julien Barnave, o Olúgbesan de Xangô*.


Julien nasceu do ventre de uma escrava africana de Oyó chamada Kikelomo, com um senhor de terras batizado Jacques Barnave. Como mandava o Código Negro, um conjunto de leis que regia a relação entre senhores e escravos, ao nascer o rebento, o pai foi obrigado a alforriar a mãe da criança e se casar com ela. 

O que fizeram, felizes, por vontade mesmo. Julien nasceu livre, então, numa época em que negros e brancos ainda não se odiavam tanto, na ilha de Saint Domingues. A pedido da mãe, ainda jovem, foi mandado para a Europa para estudar, mas nunca largou suas raízes africanas e dominicanas. 

Fazia suas oferendas e cantava para os orixás para a boa colheita e a saúde de todos na sua terra, negros e brancos, como lhe ensinara Kikelomo. Julien tinha boa índole, diziam vizinhos e parentes, mas pouca vontade própria. Torcia por todos, e seguia os mais velhos e as regras como ninguém. Daria um grande advogado, sonhava a mãe. 

E assim foi. Ele voltou da Europa jurista formado, dessa vez por ordem do pai, pronto para advogar, em doses iguais, pelo seu lado branco e seu lado negro. Um dos primeiros de uma geração de mulatos educados, que poderiam mudar aquela terra.


A situação era outra de quando havia partido, no entanto. De um lado, os brancos de sua Saint Domingues agora se ressentiam do sangue negro que disputava suas posses. Tratavam mal e malfalavam os de cor, escravos ou livres, africanos, crioulos ou mulatos. Julien, inclusive. Mas o rapaz, que não era de briga mesmo, não se importava.

Seguia as regras como podia. Um dia, no mercado, Julien viu Kikelomo ser xingada – não por brancos, mas por escravos. Acusavam-na de cultuar os deuses da fartura que faziam os senhores se fortalecerem. Xingaram-na de suja, de traidora. Julien achou a reação ignorante mas não conseguiu defendê-la em público. Era mais forte que ele. A única situação em que o rapaz conseguia se impor era quando tinha as vestes de advogado. Aí sim, ele era convicto, poderoso, cheio de opinião. Nos dias de trabalho mais duro, de casos difíceis, Julien deitava-se na cama com orgulho. “Hoje, fui homem", pensava. 

Até que um dia recebeu uma carta dizendo que não poderia mais advogar. Negros e mulatos não tinham mais direito à profissão. E toda sua hombridade, o que restava dela, foi-se embora. Julien se enrolou na tristeza e, por semanas, pensou em se matar. De que serventia teria ele agora, que não podia mais exercer a própria profissão?

Só não o fez porque uma noite, enquanto caminhava sem rumo pelas vielas de Saint Domingues, cruzou as avenidas principais, onde ficavam os armazéns e as casas dos ricos, até as ruas de terra batida e pequenas casinhas onde moravam os artesãos e a pequena classe trabalhadora que começava a se formar. 

Julien chamava o lugar de bairro burguês, mas como piada (e só para si mesmo, pois não gostava de fazer pouco dos outros em publico). Numa dessas esquinas com pouca luz, uma pequena aglomeração fazia seu barulho. Um preto alto e de ombros largos, cara de senegalês, convocava os de sangue negro a se juntarem contra os franceses.

– Makandal está falando! – chamaram os passantes, sem perceber que Julien não era daquele bairro. Era a primeira vez que o mulato ouvia falar dele.

Com a cabeça e ombros acima dos outros, Makandal falava bonito, com uma voz poderosa, como se estivesse possuído por um trovão. Ele empolgava a pequena multidão ao seu redor e fascinava Julien. Aquela presença, aquele poder. Aquela revolta. E, se Makandal encantava Julien, por algum motivo que ele não entendeu na hora, o advogado também chamou a atenção do revolucionário. 

Do alto da pedra de onde falava, Makandal olhou nos olhos do meio-negro como se o reconhecesse e o chamou para conversar após o comício. Falaram por horas. Depois dias. Meses mais tarde, por ordem do revolucionário, Julien fazia sua cabeça pra Xangô, orixá guerreiro de Oyó, terra de sua mãe.

De repente, sua vida mudou. Julien passou a se sentir forte, poderoso como Makandal. Passou a empunhar sua voz como uma arma, a desafiar quem quer que fosse. Causou tanta confusão que foi obrigado a ir viver escondido entre os maroons – o bando de foragidos que atacavam fazendas e senhores de escravos, em favor da abolição. A Guerra estava a caminho.

Na colônia revolucionária de Makandal, cada um tinha um trabalho. Julien, por sua formação, era o juiz e, às vezes, o executor. Seus companheiros preferiam impor o terror e a paranóia pelo envenenamento, mais adequado à tradição das mulheres, que podiam chegar mais próximas dos senhores de escravos por viverem na casa grande. 

Haviam montado uma extensa rede de contatos que fazia com que qualquer veneno – dos brandos que matam dormindo, aos violentos, que fazem a pessoa secar por dentro e vomitar sangue, chegassem a qualquer casa da ilha. Era só Julien decretar a sentença e... Pronto. Em três dias no máximo, o trabalho estava feito.

Alguns casos, no entanto, mereciam uma justiça mais à vista, mais pública e espetacular. Como aqueles que acendiam pólvora nas feridas dos açoitados, ou os que queimavam com carvão as vergonhas das escravas mal comportadas, e especialmente aqueles que enterravam vivos os fugitivos resgatados, depois de fazê-los cavar a própria cova. Os crimes cruéis eram tratados pessoalmente por Julien, ou, como os foragidos chamavam, Olúgbesan T’Sangó, o Vingador de Xangô. 

O Vingador passou a ser visto com o corpo pintado de vermelho sangue, arrastando seu machado duplo pelas noites adentro, batendo-o nas pedras e esquinas. Um espetáculo criado para assustar os brancos. Embora quando a sentença fosse séria, contudo, Julien não hesitasse em levar a fantasia adiante e cortar um ao meio; e, quando necessário, atear fogo nas suas casas. Num toque de ironia europeia, Julien usava o próprio bagaço da cana dos senhores de engenho para queimar todas as saídas da casa. Os brancos morriam torrados, pretos como os escravos que maltratavam. Na morte, ficavam todos iguais.

Um dia, o Vingador foi chamado para tratar de mais um caso que havia escapado da justiça. Duas escravas haviam sido acusadas de tentar envenenar seus patrões e foram punidas por eles, que as queimaram as pernas e as deixaram trancadas na senzala, pernas se decompondo em vista aberta, presas por coleiras de ferro tão justas que mal as deixavam respirar. Mesmo as cruéis punições previstas no Código Negro não contemplavam tamanha violência.

Horrorizados, 14 escravos aproveitaram a folga de domingo e denunciaram a punição hedionda para as autoridades locais. Depois de muito sofrerem, as escravas faleceram. Mesmo assim, os juízes acabaram absolvendo os senhores de escravos e o feitor, com medo que a escravarada se empolgasse demais com o poder de denunciar os patrões. Doze desses escravos foram presos e açoitados como exemplo. Dois fugiram e foram ter com o Vingador.

Xangô, que olhava tudo de longe e ainda se acostumava com a relação com seus poucos filhos, não gostou nada daquilo, tinha um pressentimento estranho. Tentou convencer Julien a não ir. Mandou recados em sonhos. Trancou ruas e toda sorte de empecilhos. Mas não foi ouvido. Julien T’Sangó, o Olúgbesan, foi até a casa dos fazendeiros. Preparou as portas e janelas com bagaço de cana mas, quando se preparava para atear fogo na primeira delas, recebeu um tiro que lhe acertou em cheio uma das coxas e caiu, se rasgando de dor. Era uma cilada.

Julien morreu queimado numa fogueira clandestina preparada pelos próprios fazendeiros. Desesperado, Xangô tentou quebrar o mastro que o segurava, para que o filho pudesse escapar, mas, no meio do caminho, Iku, o cavaleiro da morte o impediu – Julien já era dele, e não havia o que Xangô pudesse fazer. 

Iku esperou que o corpo de Julien caísse no fogo e, quando o último grito cessou, entrou nas labaredas atrás dele e o resgatou, sem que ninguém o enxergasse. Com a pele ainda borbulhando e apoiado no corpo semi-decomposto de Iku, que não pareceu sequer notar o calor do fogo, Julien olhou para o céu, como se perguntasse por que o pai não o havia salvado. Qualquer outro, Xangô teria enfrentado, mas não Iku.

De todos os filhos de Xangô, de todas as épocas, Julien era um dos seus prediletos. E se todo orixá tem ao menos uma responsabilidade na natureza e outra entre os homens, dizem que foi por causa do amor por Julien, e somente depois de sua morte, que Xangô recebeu a responsabilidade de zelar pela justiça.

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* Trecho do livro Deuses de Dois Mundos, o Livro da Morte, de PJ Pereira, que será lançado no segundo trimestre de 2015.

Sobre Deuses de Dois Mundos, de PJ Pereira: Deuses de Dois Mundos é uma trilogia literária no gênero Realismo Fantástico, inspirada nas lendas dos orixás africanos. A obra foi uma maiores surpresas da literatura brasileira em 2013/14 e entrou algumas vezes na lista de mais vendidos no Brasil (ficção). Os dois primeiros volumes, O Livro do Silêncio e O Livro da Traição, estão nas livrarias de todo o Brasil e nas principais livrarias online. O volume final será lançado em 2015. O Livro do Silêncio acaba de chegar em Portugal.

Sobre o autor: PJ Pereira é escritor e um dos publicitários mais premiados do mundo. Seu filme "The Beauty Inside" (A Beleza Interior) ganhou o primeiro Emmy, o Oscar da TV Americana para um filme passado no Youtube.

Sobre a imagem: O Negro Maroon (às vezes traduzido como o Escravo Desconhecido), estátua de Albert Mangones celebrando os revolucionários da revolução do Haiti.


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