segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

KEN LOACH é Cineasta. “O Estado cria a ilusão de que, se você é pobre, a culpa é sua”.

I Daniel Blake
O diretor Ken Loach em Londres.  DAVE J HOGAN/GETTY IMAGES).

Aos 80 anos, cineasta inglês estreia ‘Eu, Daniel Blake’, o filme que lhe rendeu a segunda Palma de Ouro.


O filme Eu, Daniel Blake, que estreia nesta quinta-feira nos cinemas do Brasil, é a história de um homem bom abandonado por um sistema mau. Um trabalhador honrado sofre um ataque do coração que o condena ao repouso. Sem renda, solicita apoio do Estado e se vê enroscado em uma cruel espiral burocrática. Esperas absurdas ao telefone, entrevistas humilhantes, formulários estúpidos, funcionários desprovidos de empatia por causa do sistema. Kafka nos anos de austeridade. Nessa espiral desumanizadora Daniel encontra Katie, mãe solteira de dois filhos, obrigada a se mudar para Newcastle porque o sistema diz que não há lugar para alojá-los em Londres, uma cidade com 10.000 moradias vazias. Daniel se torna um pai para Katie e um avô para as crianças. A humanidade que demonstram realça a indignidade do monstro que os condena. Aí está, como terão reconhecido seus fiéis, o toque de Ken Loach.

Seu cinema sempre esteve do lado dos menos favorecidos e, aos 80 anos, a realidade continua lhe dando argumentos para permanecer atrás das câmeras. Eu, Daniel Blake, Palma de Ouro no último festival de Cannes (a segunda de Loach), é um filme espartano. Não precisa de piruetas para comover. A história foi escrita pelo amigo e roteirista Paul Laverty, depois de percorrer bancos de alimentos, centros de emprego e outros cenários trágicos do Reino Unido de hoje, onde conheceu muitos daniels e katies. A realidade de Loach (Nuneaton, 1936) está lá fora para quem quiser vê-la. Mas, em um mundo imune aos dados, a emoção que o cineasta mobiliza para contar essa realidade se revela mais valiosa que nunca. Recebe o EL PAÍS em seu escritório no Soho londrino.
Pergunta. Como chegamos à situação que seu filme descreve?
Resposta. É um processo inevitável, é a forma como o capitalismo se desenvolveu. As grandes corporações dominam a economia e isso cria uma grande leva de pessoas pobres. O Estado deve apoiá-las, mas não quer ou não tem recursos. Por isso cria a ilusão de que, se você é pobre, a culpa é sua. Porque você não preencheu seu currículo direito ou chegou tarde a uma entrevista. Montam um sistema burocrático que te pune por ser pobre. A humilhação é um elemento-chave na pobreza. Rouba a sua dignidade e a sua autoestima. E o Estado contribui para a humilhação com toda essa burocracia estúpida.
P. Abandonar os mais desfavorecidos é uma escolha política?
R. É uma escolha política nascida das demandas do capital. Se os pobres não aceitassem que a pobreza é sua culpa, poderia haver um movimento para desafiar o sistema econômico. Os meios de comunicação falam de gente folgada, de viciados, de pessoas que têm muitos filhos, que compram televisores grandes… Sempre encontram histórias para culpar os pobres ou os migrantes. É uma forma de demonizar a pobreza. Neste inverno, muitas famílias terão de escolher entre comer e se esquentar. Existe uma determinação da direita para não falar dessas coisas e é assustador tolerarmos isso.
P. A situação lembra Cathy Come Home, seu filme de 1966 sobre uma família jovem que está na rua. O que mudou em 50 anos?
R. Agora é pior. Naquela época, os elementos do Estado de bem-estar ainda funcionavam, agora não. A sociedade, hoje, não está tão coesa. Acontece em toda a Europa. O sistema se tornou pior porque o processo capitalista avança.
P. As histórias humanas são seu veículo para articular mensagens políticas?
R. Todas as histórias humanas são políticas. Têm consequências políticas. Nem Katie nem Dan são animais políticos. Não fazem discursos, não participam de reuniões. Mas a situação em que se encontram é determinada pela política. É preciso haver indivíduos. Não vale alguém que represente algo. Devem ser idiossincrásicos. Devem ser pessoas com coisas particulares que as tornem especiais.
P. Todo o cinema é político?
R. O cinema norte-americano cultua a riqueza. Os personagens têm dinheiro e casas bonitas. E nunca se explica de onde vem esse dinheiro. Todos parecem muito saudáveis, têm corpos perfeitos. O subtexto é que a riqueza é boa, que o privilégio é bom. Além de outras mensagens, como que o homem com um revólver resolverá todos os seus problemas. Há uma agenda de direita no cinema norte-americano. Com exceção de Chaplin, claro. Seus filmes contêm uma certa política radical, a do homem pequeno que vence.
P. Você apoia Jeremy Corbyn, o polêmico líder trabalhista. Acredita que seu projeto de esquerda poderia mudar a realidade descrita em seu filme?
R. Sim, sou otimista. Sanders, Podemos, Syriza... Existe uma sensação de que outro mundo é possível. A ascensão de Corbyn traz muita esperança, mas é sistematicamente atacada por toda a imprensa, pela BBC, e até pelos jornais de esquerda. É uma grande batalha, mas é muito popular entre as bases.
P. Acontece com frequência, como seu país demonstrou, que as mensagens populistas e xenófobas atraiam os mais desfavorecidos.
“O cinema norte-americano cultua a riqueza. Os personagens têm dinheiro e casas bonitas. E nunca se explica de onde vem esse dinheiro. Há uma agenda de direita nesse cinema”
R. Oferecem uma resposta simples: os imigrantes roubaram seu trabalho. É igual ao crescimento do fascismo nos anos 1930. É fácil apontar o diferente. As pessoas são sempre vulneráveis às respostas simples. A esquerda tem uma resposta mais complicada.
P. O que pensa quando ouve Theresa May dizer que os conservadores são o partido da classe trabalhadora?
R. Seria uma piada, não fosse o fato de que ninguém a questiona. É um Governo que utiliza a fome como arma, que deixa as pessoas passarem fome para discipliná-las. É propaganda.
P. Insinuou que Jimmy’s Hall (2014) seria seu último filme, mas voltou e ganhou a Palma de Ouro. Desta vez é para valer?
R. Não sei. Como no futebol, jogaremos uma partida de cada vez. Há muitas histórias para contar, mas, fisicamente, o cinema é muito exigente.
P. Como gostaria de ser lembrado?
R. Como alguém que não se rendeu, acho. Não se render é importante, porque a luta continua. E as pessoas tendem a se render quando ficam velhas.

sábado, 14 de janeiro de 2017

A batalha perdida pela mídia.

A batalha perdida pela mídia. 25831.jpeg

O crescimento avassalador das ideias conservadoras no Brasil tem uma causa principal: o amplo e irrestrito domínio que o pensamento neoliberal estabeleceu no País através da monopolização da mídia.




As esquerdas perderam totalmente a grande batalha pelos corações e mentes dos brasileiros na medida em que, quando no governo, foram incapazes de criar um sistema alternativo de comunicação que fizesse o contraponto ao sistema ideológico de lavagem cerebral montado pela grande burguesia nacional, sempre associada aos interesses do imperialismo.

Uma prova de que a derrota das esquerdas nessa batalha ideológica foi enorme, é que até mesmo as expressões "burguesia" e "imperialismo" foram banidas dos meios de comunicação e parece que até mesmo os representantes da esquerda têm medo de utilizá-las.

As maiores chances de estabelecer um confronto ideológico contra o receituário neoliberal foram perdidas pelos governos de Lula e Dilma, principalmente do primeiro, quando, fortalecidos pelo alto desenvolvimento econômico e social que o Brasil experimentou a partir de 2002, preferiram escolher o caminho da composição com os grandes meios de comunicação, na esperança de que assim pudessem ser neutralizados.

As escandalosas verbas de publicidade que os governos do PT atribuíram a Rede Globo, com a expectativa de que com isso pudessem comprar uma certa imparcialidade da emissora, logo se mostrou equivocada. Ao primeiro sinal de crise, a Globo se alinhou ao lado da imprensa mais venal do País, representada pela Revista Veja, na campanha que levou a derrubada de um governo legitimamente eleito.

Hoje, os espaços para uma mídia independente se restringem às redes sociais e a alguns sites, como é o caso aqui do Sul21, em meio a um mar de jornais, revistas, emissoras de rádio e televisão, todos falando a mesma linguagem antipopular, tentando convencer os brasileiros das vantagens de sermos governados por figuras com Temer, Sartori e Marchezan.

As pessoas, que por opção própria se recusam a assistir a Rede Globo e a RBS, que não querem ler a Revista Veja ou o jornal de Zero Hora, são submetidas a outro tipo de pressão ideológica. Há pouco tempo uma vereadora de Porto Alegre reclamou que os postos públicos de saúde tinham em suas salas de espera telas de televisão com a programação da Globo ou de canais a ela filiados.

Como um novo "big brother", o cerco às pessoas é total. Bares, restaurantes, hospitais, academias de ginástica, em qualquer local onde pessoas esperam para serem atendidas ou praticam algum tipo de atividade em conjunto, lá estão as telas de televisão sempre com os mesmos programas.

Meu amigo, o Dr. Franklin Cunha, lembra que nos consultórios médicos e odontológicos, onde não seria de bom tom a existência de telas de televisão, já que seu público é, teoricamente, de um padrão cultural mais alto, a lavagem cerebral se faz através de revistas e jornais.

Analista do comportamento de seus ex-colegas, Franklin diz que jamais encontrou uma Carta Capital, por exemplo, nessas salas de espera. Quem quiser ler alguma coisa antes de ser atendido, precisa se contentar com Veja (presente em 9 de cada 10 consultórios), Isto É, Época e a imbatível, Caras (todos têm Caras) e uma que outra das revistas, ditas para mulheres.

Aliás, o sucesso dessas tais revistas femininas é mais uma prova de que a lavagem cerebral é um sucesso e depõe contra as ativistas dos movimentos em defesa da emancipação das mulheres.

Estou propondo ao Franklin criarmos um teste para conhecer o nível ideológico de nossos conhecidos. Quem citar como fonte de qualquer informação sobre política, o Jornal Nacional, a Revista Veja ou Zero Hora, só poderá conversar conosco sobre amenidades, como previsão do tempo ou no máximo algum assunto relacionado ao futebol.

Mulheres que tenham assinatura de Marie Claire, por exemplo, serão avaliadas apenas pelos seus atributos estéticos e nos recusaremos a discutir com elas qualquer assunto que tenha alguma relação com a política, mesmo correndo o risco de nos chamarem de machistas.

Pior seria nos chamar de alienados.

Marino Boeira é jornalista, formado  em História pela UFRGS.