domingo, 12 de novembro de 2017

Bezerra da Silva, voz do morro, voz do Brasil.


Bezerra da Silva nasceu rebelde e determinado a não se curvar a ninguém. (“Bezerra da Silva”, por Rafae Silva, via Flickr/Creative Commons)

zeca azevedoPublicado em: 

Bezerra da Silva proclamou-se “a voz do morro”. O epíteto não era desprovido de sentido, já que Bezerra registrou em suas gravações a dura experiência dos que vivem nas franjas da sociedade brasileira, em particular nas favelas do Rio de Janeiro. O próprio Bezerra conhecia bem a pobreza e a violência que cantava com tanta desenvoltura.
Natural de Pernambuco, Bezerra disse sobre seu nascimento em 1927: “Até o dia do meu nascimento é complicado. Já daí começa a confusão”. O pai de Bezerra era da marinha mercante e abandonou Hercília, a mãe, justamente quando ela estava grávida do futuro sambista. Bezerra conheceu o trabalho ainda menino. Ajudava a família fazendo pequenos serviços, vestindo camisa feita de saco de pano e andando de pé no chão.
Precoce também foi a inclinação de Bezerra da Silva para a música. O jovem queria estudar música, mas a família foi contra. Para fugir às pressões da mãe e do padrasto, que entrou na vida do nosso personagem quando este tinha dez anos de idade, o adolescente Bezerra ingressou na marinha mercante, tal qual o pai biológico. Ele permaneceu dois anos na marinha, até que foi assediado sexualmente por um oficial. Bezerra da Silva não aceitou o avanço e desacatou o lúbrico oficial. Resultado: foi expulso da marinha. Bezerra da Silva nasceu rebelde e determinado a não se curvar a ninguém.
Aos dezoito anos, Bezerra da Silva partiu sozinho para o Rio de Janeiro. Procurou na cidade maravilhosa o pai biológico, que o rejeitou. Trabalhou como ajudante de obras e pintor de paredes. No Rio, meteu-se em turbulentos relacionamentos com mulheres. O episódio que Bezerra gostava de contar desse período era o ”caso do pijama”. Vivendo com o dinheiro racionado, Bezerra encantou-se com um pijama exposto em uma vitrine e juntou dinheiro para comprá-lo. Levou o pijama para casa em uma terça, para estreá-lo no domingo. Na sexta-feira, ao voltar para casa, encontrou a mulher com quem vivia acompanhada de um homem. Para piorar a situação, o homem vestia o pijama que Bezerra havia comprado e ainda não havia usado. Houve gritaria no barraco, a vizinhança ficou alvoroçada. Bezerra, no meio da confusão, correu para uma gaveta. Todos pensaram que dali sairia uma arma, mas Bezerra puxou um cigarro e um fósforo. Calmamente, acendeu o cigarro e disse ao homem: “A mulher você pode levar que não vale nada, mas o pijama você tira, que é meu”. Esse episódio em tom de anedota abre uma janela para uma vida de privações, na qual objetos às vezes têm mais valor do que as pessoas.
O pernambucano Bezerra da Silva absorveu o espírito e o ritmo da cidade do Rio de Janeiro ao morar por vinte anos no morro do Cantagalo. Ali, misturou-se com a bandidagem e com o samba, que corria solto pelo lugar. Para sobreviver no morro, Bezerra teve que recorrer muitas vezes aos próprios punhos e surrar os malandros que queriam tirar dele o escasso dinheiro, obtido à custa de muito trabalho. Isso sem falar no repetido assédio da polícia a que era submetido por ser negro e pobre.
Até esse momento, Bezerra ganhou seu sustento trabalhando na construção civil. Em 1954, perdeu os bicos que fazia e não conseguiu mais encontrar serviço. Desesperado, Bezerra foi para a rua, onde viveu como mendigo por sete anos, segundo contou em entrevistas. O ciclo de miséria total se encerrou quando uma amiga do morro do Cantagalo sugeriu a Bezerra que procurasse auxílio em um terreiro de umbanda. A dona do terreiro disse a Bezerra que o infortúnio em que ele se encontrava era resultado de um trabalho feito por uma mulher que o odiava. Para sair da má fase, Bezerra converteu-se à umbanda. Com a ajuda que recebeu da comunidade da umbanda, Bezerra saiu das ruas e voltou a trabalhar. Também reencontrou seu grande amor, a música. Integrou-se às rodas de samba como cantor e percussionista.
Em meados dos anos 1960, Bezerra começou a compor e a participar de gravações de amigos sambistas como instrumentista. O primeiro compacto como artista principal aconteceu em 1969. Em 1970, Bezerra da Silva registrou o primeiro LP pela Tapecar. Chamado Bezerra da Silva, o Rei do Coco, Volume 1, o LP só foi lançado cinco anos depois por causa da crise do petróleo, que tornou escassa a matéria-prima empregada na fabricação de discos de vinil. Com a boa repercussão do primeiro LP, Bezerra lançou o segundo em 1976. No ano seguinte, começou a trabalhar na orquestra da Rede Globo como instrumentista. Aos cinquenta anos de idade, Bezerra da Silva realizou o sonho de viver apenas de música.
Além do emprego fixo na orquestra da Rede Globo, Bezerra continuou a gravar LPs. Depois de lançar um álbum em parceria com Genaro em 1978, Bezerra publicou em 1979 e 1980 dois LPs pela gravadora CID que sedimentaram seu nome junto ao público consumidor de samba. Os discos de Bezerra da Silva dedicavam-se ao partido-alto, tipo de samba que tem forte presença dos instrumentos de percussão e que privilegia a participação improvisada e espontânea dos solistas. O partido-alto que nasceu livre e solto nas rodas de samba dos morros cariocas ganhou forma mais rígida para se enquadrar no circuito fonográfico, mas manteve a energia da origem.
A escalada das vendas dos LPs de Bezerra da Silva lançados por uma empresa fonográfica de menor porte logo chamou a atenção das majors. A RCA contratou Bezerra da Silva em 1980. A primeira faixa do primeiro LP de Bezerra da Silva publicado por uma multinacional foi “Colina Maldita”, gravada pelo sambista com o amigo e velho parceiro Genaro. “Colina Maldita” oferece um retrato fiel da vida no morro. O repertório de Bezerra era basicamente formado por sambas escritos por compositores desconhecidos que ainda moravam nos morros cariocas. Crivados de casos da vida real protagonizados por traficantes, presidiários, trabalhadores humildes e por toda sorte de desfavorecidos, os álbuns de Bezerra da Silva são documentos inestimáveis do cotidiano das favelas do Rio e do Brasil inteiro.
Em 1984, Bezerra da Silva incluiu a faixa “Jornal da Pedra” no LP Esse Aí É Que É o Homem. A letra de “Jornal da Pedra” revela a lei férrea da favela: a lei de número 00, que nenhum doutor estudou e que se aplica aos línguas-frouxas, aos dedos-de-seta que praticam o esporte perigoso da entregação. Na favela, os dedos-duros são condenados à morte sem apelação. A crítica aos delatores é recorrente nos discos de Bezerra e tem seu momento máximo na hilária “Defunto Caguete”, outra faixa do LP Esse Aí É Que É o Homem, na qual o morto, mesmo no caixão, continua a apontar o dedo nervoso e a fazer o serviço da entregação para a polícia.
“Vítimas da Sociedade”, faixa do LP Malandro Rife (1985), dá a real ao dizer quem são os verdadeiros ladrões no Brasil: “Se vocês estão a fim de prender o ladrão/Podem voltar pelo mesmo caminho/O ladrão está escondido lá embaixo/Atrás da gravata e do colarinho/Só porque moro no morro/A minha miséria a vocês despertou/A verdade é que vivo com fome/Nunca roubei ninguém, sou um trabalhador/Se há um assalto a banco/Como não podem prender o poderoso chefão/Aí os jornais vêm logo dizendo/Que aqui no morro só mora ladrão”. Hoje, época em que os bandidos de colarinho branco mandam e desmandam no país e que o preconceito social refestela-se no ambiente político criado pela ascensão da direita, “Vítimas da Sociedade” revela-se especialmente relevante.
“Malandragem Dá Um Tempo”, aquela do “É por isso que eu vou apertar, mas não vou acender agora”, explodiu nas paradas de sucesso em 1986. Nessa época o rock brasileiro dos anos 1980 vivia seu auge comercial e a figura marginal e cheia de credibilidade de Bezerra da Silva atingiu novo grau de popularidade. Os fãs de rock, historicamente interessados em narrativas que expõem o lado sombrio da sociedade, abriram os braços para Bezerra da Silva. A banda Barão Vermelho fez uma versão frouxa do sucesso maconheiro de Bezerra da Silva e o infame grupo RPM convidou o sambista a participar da faixa “O Teu Futuro Espelha Essa Grandeza” do LP RPM(também conhecido como Quatro Coiotes). A associação de Bezerra com Paulo Ricardo e sua turma rendeu uma gravação de “protesto” pomposa e esquecível.
A essa altura, Bezerra era um grande nome do samba, premiado com discos de ouro e platina e reconhecido nacionalmente como a voz do morro. A despeito do sucesso, Bezerra estava insatisfeito com a gravadora, que faturava muito com os discos do sambista, mas repassava pouco dinheiro a ele. Bezerra soube que a gravadora vendia discos sem registro e manipulava os números. Em 1993, o sambista rompeu com a RCA/BMG e retornou à velha casa fonográfica, a CID, para gravar em 1995 o CD Os Três Malandros In Concert com Moreira da Silva e Dicró, aula magna de humor e de malandragem.
Em 1999, foi publicado o livro Bezerra da Silva  Produto do Morro, de autoria de Letícia C.R. Vianna, do qual extraí muitas informações para compor esse texto sobre o sambista pernambucano. Em 2001, Bezerra da Silva surpreendeu a todos ao tornar-se evangélico. O último álbum do cantor, Caminho de Luz, é totalmente gospel e foi lançado em 2005, alguns meses depois da morte de Bezerra, ocorrida em janeiro daquele ano, aos 77 anos.
A vida e a obra de Bezerra da Silva condensam a natureza e a trajetória do samba. No livro Uma História do Samba  As Origens, Volume 1, publicado em 2017 (um dos grandes lançamentos bibliográficos deste ano), o jornalista Lira Neto esmiúça a história do gênero musical para derrubar “pós-verdades” legitimadas pelo uso e pelo tempo e para demonstrar que esta música está umbilicalmente ligada às condições perversas de vida a que é submetido o povo negro no Brasil. Por meio de resgate de documentos, Lira Neto mostra que os primeiros proponentes do samba viviam à margem da sociedade, algumas vezes às custas de crimes, e tiveram que encarar a repressão institucional mais dura sob a forma de ação policial. O samba, voz negra do desafio e da conformidade, une revolta e lamento e registra de modo inexorável a mentalidade e o percurso histórico de um povo que foi violentamente arrancado de sua terra e trazido ao Brasil na condição subumana de escravo e que ainda luta contra o racismo incrustado no país. Lira Neto escreve: “Sinônimo de malandragem, (o samba) viu-se perseguido pela polícia, entregou-se à vadiagem das ruas, perambulou pelos cabarés mais ordinários da zona do Mangue. No morro, foi morar nas ribanceiras das favelas, sem nunca abdicar dos apelos do asfalto. Vendido e comprado na surdina, tratado como produto clandestino, aos poucos foi sendo envolvido pelos códigos e engrenagens do grande mercado. Ladino, chegou ao disco, ganhou o rádio, virou astro de cinema”. Este trecho do livro Uma História do Samba As Origens, Volume 1 resume não só a história do samba, mas também a de Bezerra da Silva.
Os álbuns de Bezerra da Silva, maliciosos, populares e atualíssimos, continuam a apontar o dedo-de-seta para as injustiças da sociedade brasileira. É um serviço de entregação perdoável e desejável. A discografia de Bezerra da Silva não tem prazo de validade e é artigo de primeira necessidade. Vitor Ramil escreveu no texto de divulgação do álbum Tambong: “Não estou à margem de uma história, estou no centro de outra”. A (outra) história de Bezerra da Silva, ligada intimamente ao samba e à exclusão social, deve ocupar espaço central nas nossas vidas.
*** zeca azevedo é produtor cultural e colecionador de discos.

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