domingo, 12 de março de 2017

Cultura. Nunca antes nas telas desse país.

POR SONIA FARDIN*
EP6_cultura
O documentário brasileiro Menino 23 (2016), com direção de Belizário Franca, está na lista de possíveis selecionados para concorrer ao Oscar de 2017 na categoria Documentário de Longa-Metragem.
 
Em que pese essa premiação seja hegemonizada pelos interesses da indústria cultural americana, tal fato não é irrelevante. 

Menino 23 é uma realização ancorada em robusta e corajosa pesquisa historiográfica produzida para tese de doutoramento do historiador Sidney Aguilar. 

Foi a indicação de existência de tijolos com a inscrição da suástica nazista, feitos no município de Campina do Monte Alegre, interior de São Paulo, que o levou a história de um grupo de meninos negros levados de um orfanato no Rio de Janeiro, na década de 1930, por fazendeiros-empresários da família Rocha Miranda para trabalhar sob regime de escravidão no interior paulista. 

Os meninos eram identificados na documentação da fazenda apenas por números.  Aluízio Silva, sobrevivente dessa história de opressão e eugenia,  identificado como Menino 23, é quem forneceu ao historiador e posteriormente ao  documentarista, os detalhes dessa história de aproximação dos capitalistas brasileiros com a ideologia nazista, a eliminação da população negra  e a permanência do regime escravista em plena república; denunciando a aproximação dos Rocha Miranda com a Ação Integralista Brasileira e atuações coordenadas entre instituições estatais, educacionais, religiosas e empresariais nessa trama fascista. Mesmo deixando apenas entrever, o documentário também pontua traumas decorrentes de provável exploração sexual de alguns meninos.

A narrativa é construída com entrevistas de sobreviventes e familiares, registros de documentos oficiais, locações em lugares onde os meninos foram escravizados e também recriações de cenas e situações narradas pelos entrevistados. Apesar do recurso da encenação alusiva às lembranças narradas, nada no filme é ficcional. As cenas criadas têm o rigor da representação de situações trazidas pelas memórias dos sobreviventes e seus familiares, têm o objetivo de ilustrar práticas e situações que, na produção da história oficial da sociedade capitalista, são caladas e invisibilizadas.
Menino 23 também é uma obra de grande qualidade técnica e estética, um dos exemplos do acúmulo teórico, estético e político da produção audiovisual brasileira recente.
A produção de filmes longa metragens brasileiros ficcionais e documentários teve um expressivo aumento nos últimos treze anos, em 2013 alcançou a marca dos 100 filmes/ano; o maior índice até então registrado era da década de 1980, 80 filmes/ano. Também a recepção nacional e internacional das produções no último período obteve ampliação de público e premiações em importantes festivais e mostras dentro e fora do Brasil.
Contudo, o que destaco do período recente é a ampliação da produção e veiculação de filmes documentários que lograram inserção nos circuitos públicos e privados de exibição, maior reconhecimento do público nacional bem como premiações em eventos de atestação cultural como mostras e festivais historicamente ocupados por produção ficcional.
Vale registrar que a cinematografia brasileira pode ser considerada como uma das que sempre manteve na cena cultural a realização obras documentais e trajetórias de nomes emblemáticos, apenas para citar alguns: Humberto Mauro, Linduarte Noronha,Vladimir Carvalho, Paulo César Saraceni, Geraldo Sarno, Carlos Nader, Leon Hirzman, Eduardo Scorel, Silvio Tendler, Silvio Back, Eduardo Coutinho, Maurice Capovilla, Paulo Gil Soares, Sérgio Muniz, Renato Tapajós, Helena Solberg, João Batista de Andrade, Arthur Omar Octávio Bezerra, Nelson Pereira dos Santos e José Padilha.
Contudo, até recentemente, a maioria das produções, mesmo desses nomes consagrados, pouco repercutia fora dos espaços de circulação de um público restrito envolvido com questões audiovisuais e político-culturais. Somente no final da década de 1990 o documentário de longa-metragem brasileiro logrou algum espaço nas telas de exibição (cinemas e canais especializados de TV), apresentando diversidade temática com relativo sucesso de público e crítica, estimulando alguns cineastas a firmaram-se exclusivamente como realizadores documentaristas.
Porém, é sabido que produções audiovisuais com explicita intenção de “contar uma história real” nunca foi somente prerrogativa ou iniciativa de cineastas com formação e ou atuação profissionalizada na área, nem somente com vistas à inserção no circuito comercial de difusão. São muitos os audiovisuais, sob a forma de reportagens e de /ou produção de documentários stricto sensu, realizados por indivíduos e grupos com objetivo de produzir instrumental audiovisual para as lutas sociais e disputas de todas as vertentes políticas. 
Com a facilitação do acesso a equipamentos de captação de imagens em 16 mm desde do final dos anos 1950; nas décadas seguintes em super 8 e posteriormente em vídeo, a produção de documentação audiovisual passou a ser uma das possibilidades de realização de projetos individuais e coletivos para entidades estudantis, sindicais e culturais. Contar histórias de vidas reais, documentar memórias sociais e episódios históricos, assim como registrar os embates do presente, tornou-se cada vez uma das dimensões da luta política dos movimentos sociais e setores da esquerda brasileira. 
Dois exemplos da década de 1980 são a Associação Brasileira de Vídeo Popular (ABVP) e o Centro de Trabalho Indigenista (CTI). Quanto à primeira, trata-se de uma entidade com ramificação e participação de produtores de todo o país; como afirma Gonçalves, era um projeto de atuação política que pretendia “conceber termos de produção, linguagem e participação popular”. Já a segunda, seu “trabalho utiliza a produção de vídeos como forma de discussão e debates para criar uma reflexão sobre a identidade dos povos e seu lugar no mundo, sendo os próprios índios autores e realizadores de alguns dos documentários.” ¹
É vasta a produção brasileira, exatamente por isso a intenção aqui não é apresentar uma lista completa de autores e/ou obras, tampouco realizar um histórico aprofundado do gênero no Brasil. A proposição é bem modesta: fazer algumas reflexões embrionárias sobre dois campos de realização de documentários que sempre existiram na cena brasileira, mas que ampliaram sua dimensão nos anos dos governos Lula e Dilma.
Um deles é o das produções que visam inserção no mercado de telas de exibição comercial, cinemas e canais TV especializados públicos e privados, em muitos casos fazendo uso de editais de fomento gestados por políticas públicas de incentivo à produção audiovisual e/ou leis de incentivo fiscal, visando o reconhecimento dos circuitos de atestação promovido por festivais de médio e grande porte.  
O outro é o de produções focadas em incidir de forma rápida e ampla em disputas e lutas sociais diversas, nem sempre dispondo do tempo exigido pela burocracia de cadastros e tramites de editais de fomento e afins, tampouco da empatia com os interesses de grandes corporações que, favorecidas por leis, fazem uso de parte dos impostos públicos para vinculação de sua imagem à produção audiovisual. Em síntese, o que proponho é uma breve reflexão sobre esses dois campos políticos do documentar, divulgar e preservar narrativas da vida real brasileira nos primeiros anos do século XXI.
É preciso registrar que nos últimos treze anos, quebrar hegemonias de setores historicamente privilegiados da indústria cultural, desmontar dinâmicas excludentes, emular novos formatos, diversificar temas e democratizar canais de difusão foram focos das políticas públicas do governo federal voltadas ao fomento à produção e  à exibição  de documentários.
No que tange ao primeiro campo citado, no rol de políticas públicas o Programa DOCTV foi o grande protagonista. Como afirma Verena Carla Pereira²
  • A partir de 2003, o Minc passou a desenvolver ações voltadas para a televisão aberta e para televisão pública. Tais ações eram norteadas pela criação e aplicação de novos modelos de negócios que se adequassem melhor ao cenário audiovisual do período. As ações desenvolvidas em parceria com a TV pública criaram políticas de fomento à produção independente nas diversas regiões do país, integrada à teledifusão nacional em rede. 

  • Dentro desse contexto, foram criadas ações como o DOCTV nacional, o DOCTV Ibero América, Revelando os Brasis, Documenta Brasil, Banco de Documentários da América Latina, Programadora Brasil, entre outros. Entre essas ações a mais próxima do modelo empregado no DOCTV é o Programa Documenta Brasil, produzido pela Associação Brasileira de Produtoras Independentes de Televisão (ABPI-TV) em parceria com o Sistema Brasileiro de Televisão (SBT), com o apoio da SAV/Minc, e o patrocínio da Petrobrás. O concurso Documenta Brasil visa apoiar a produção e lançamento de obras audiovisuais inéditas do gênero documentário e também é destinado às empresas audiovisuais brasileiras de produção independente.  
O programa renovou a forma de produção de documentários com a articulação de um sistema de teledifusão, de distribuição, de comercialização. Essas e outras ações fizeram parte de um grande sistema único criado para viabilização desse Programa.³   Também foram implantadas ações de formação tanto para a realização quanto para a formatação e desenvolvimento de projetos. Como afirma Gustavo Soranz Gonçalves[4]
  • O DOCTV mostrou-se fundamental na formação de recursos humanos para a produção documental, especialmente nos estados das regiões mais afastadas dos grandes centros, como os estados do Norte e Nordeste do país, que geralmente não contam com produção estabelecida de conteúdo audiovisual autoral. Essas oficinas foram fundamentais para estabelecer parâmetros para a formatação de projetos, contribuindo para a realização de trabalhos mais elaborados, que passavam a se distanciar de um modelo preponderantemente jornalístico ou institucional”.
Certamente um dos pontos centrais dessa política foi a implantação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), operadora da TV Brasil, pois somente com a articulação entre recursos para fomento à produção, formação e veiculação foi possível gestar uma cadeia completa para fortalecimento dos projetos de documentários que não se enquadram nos padrões favorecidos pelas leis de incentivo à produção cultural. 
Nessa composição de políticas públicas integradas a instituição de uma rede pública de TV envolvendo todos os Estados teve papel determinante. Até 2007 o DOCTV, já havia possibilitado a criação de mais de 200 documentários e a exibição de mais de 3.000 horas de material nas TVs públicas de todo o país. O programa foi adotado também por alguns países da América Latina e da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa.
Apesar de enfrentar deficiências históricas de infraestrutura nas TVs regionais e burocracias na liberação de recursos para as edições do DOCTV, como afirma a pesquisadora Verena Carla Pereira, estava presente “a vontade política de construir um projeto alternativo de televisão brasileira que possibilite uma maior abertura à produção independente de documentários. Um memorial completo do que foi esse projeto está publicado em Doctv, operação de rede (2011) de autoria de Maria do Rosario Caetano apresentando dados que corroboram a afirmação acima.
Também outros setores governamentais além do Minc e EBC orientaram ações em  conexão com essa política, a exemplo do Projeto Marcas da Memória, da Comissão de Anistia, órgão do Ministério da Justiça para a reparação das violências do Estado contra a sociedade brasileira no período da ditadura civil-militar de 1964/1985. 
É significativa a abrangência temática e geográfica que alcançou, embora com recursos reduzidos colaborou para a produção e circulação em todo Brasil de 20 produções audiovisuais focadas no direito à memória como um dos pilares de reparação social dos grupos políticos que foram violentamente massacrados por defender um projeto de sociedade mais justo e se contrapondo ao estado ditatorial civil-militar. 
Consagrados documentaristas como Sílvio Tendler e Renato Tapajós além de outros iniciados e iniciantes conseguiram realizar projetos importantes que não mediram palavras e imagens  para dar dimensão crível às reais barbáries cometidas pela repressão estatal.  Dentre esses, Repare Bem (2013) com direção de Maria Medeiros – documenta a história de sobrevivência de Denise Crispim e  Eduarda Ditta Crispim Leite, mulher e filha do militante político Eduardo Leite, conhecido como “Bacuri”, assassinado  aos 25 anos em 1970, depois de ter sofrido 109 dias de tortura – conquistou  três Kikitos do Festival de Gramado 2013, incluindo o de melhor filme da seção estrangeira para o júri e os críticos.  Fez também parte do Marcas da Memória ampla distribuição gratuita dos documentários para escolas, museus, centros acadêmicos, associações culturais e movimentos sociais em todo Brasil, fomentando cineclubes, mostras e debates.
Contudo, em que pese a sinergia de ações e políticas públicas para a produção e difusão de narrativas contra hegemônicas, uma observação a ser feita é que uma vertente mais palatável de documentários, especialmente sobre vida e obra de artistas e grupos musicais famosos, foi a que logrou maior visibilidade na grande mídia e decorrente impulso nas programações das salas de cinema comerciais; a maioria é de excelente qualidade técnica e estética, mas em grande parte documenta indivíduos e fatos culturais consagrados,  ou seja,  replica a celebração de ícones investidos da monumentalidade instituída pela indústria cultural hegemônica que contam com inegável apelo para nichos de mercado já cativados, tais como: A música segundo Tom Jobim (2012) de Nélson Pereira dos Santos e Dora Jobim; Chico: Artista Brasileiro (2015), Direção de Miguel Faria Jr. e Diana Vasconcellos;  Dzi Croquettes (2009), direção de Tatiana Issa e Raphael Alvares; Loki, Arnaldo Batista (2008), direção de Paulo Henrique Fontenelle, Waldick Soriano, sempre no meu coração (2007), direção de Patrícia Pilar,  entre outras.
Em outra direção está o segundo campo citado, com uma profusão de diversificados trabalhos oriundos da potente apropriação dos movimentos sociais da produção de documentários como ferramenta de explicitação dos conflitos e contradições da sociedade brasileira atual. 
Impulsionadas por programas e políticas públicas como o Cultura Viva, Mídia Livre, Pontos de Memória entre outros, uma vasta produção audiovisual foi criada por coletivos e redes, temáticas e identitárias, que se forjaram pelo Brasil nas últimas décadas para fazer luta política.
Essa produção ainda não foi devidamente mapeada, nem contou com canais dedicados à sua ampla veiculação, mas tem disputado presença tantos em redes sociais, como em mecanismos alternativos de armazenamento e difusão, assim como vem circulando em  mostras e festivais militantes existentes em todo Brasil. Cito em especial o caso do festival Mostra Luta, organizada anualmente em Campinas desde 2008 com foco em exibição, debate e preservação de produções audiovisuais produzidas de forma independente e colaborativa que abordam temáticas e lutas sociais. O acervo acumulado pela Mostra Luta entre 2008 e 2014 soma  244 produções oriundas de todas as regiões do pais abordando as contradições e conflitos da sociedade capitalista no campo e na cidade (Figura 1)  é um dos exemplos da amplitude e capilaridade desse campo de produção de documentários (www.mostraluta.org.br).
No mesmo campo de criação contra hegemônica é significativa também a repercussão de Bichas, o documentário (2015), produzido por jovens homossexuais que foram atacados e ameaçados em uma rua de Recife por homofóbicos; o grupo registrou suas histórias de forma simples e direta. Feito no calor na luta, postado nas redes sociais como resposta imediata à um ataque individual, mas percebido e devidamente tratado como questão social, em poucos dias alcançou dezenas de milhares visualizações e compartilhamentos.
Cito aqui apenas alguns exemplos, mas certamente, mesmo que em parte ainda sob formas e modelos de produção e difusão pautados pelos canais comerciais, nunca antes na história das telas (de diversos formatos) este pais pode assistir tantos documentários que mostram não apenas a potência cultural e história política recente sob uma ótica crítica, mas, também e sobretudo, os conflitos da sociedade brasileira atual. Ainda há muito para ser visto e revisto sobre esse período recente da cultura brasileira.
Esse enorme acervo e a experiência histórica de gestão pública que documentam não podem ficar esquecidos na prateleira da história.
___
¹GONÇALVES, Gustavo Soranz. Panorama do documentário no Brasil. Centro Universitário do Norte – Uninorte/Amazonas. Doc On-line, n. 01 Dezembro 2006, 79-91.p. 87. disponível em www.doc.ubi.pt.

²PEREIRA, Verena Carla. A produção de documentários através do DOCTV. http://www.revistas.usp.br/Rumores/article/view/51143

³PEREIRA, Verena Carla. Produção documentária estatal no DOCTV. Dissertação de mestrado. Universidade Estadual de Campinas . Instituto de Artes. Programa de Pós-Graduação em Multimeios.2010. http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000774903
[4]Op. Cit

*Sonia Fardin é historiadora e trabalhadora da cultura.

brasil
 Revista Esquerda Petista

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